Samuel Garrido


Já não me lembro exactamente quando é que conheci o Samuel Garrido. Creio que na altura o gajo era apenas o “Samu” ou Samuka ou que raio é que lhe chamavam. Já não me lembro exactamente quando é que o conheci, se no Inverno de 2008 ou no Inverno de 2009. Não fazia a puta ideia que ele era nem de onde vinha e sinceramente, nem queria saber. Naquele tempo eu só queria saber era de gajas, de copos, de garraiadas (pegar literalmente touros pelos cornos; quando não havia touros e eu Márito armavamos uma outra briga pela Sé para ver se pegávamos homens pelos longos cornos!) e de placagens. Placar muito e bem, preferindo de todas aquelas que me eram possíveis executar, aquela que deixava o gajo estatelado no chão a pedir incessantemente pela entrada do físio em campo. Para minha infelicidade, lembro-me que conheci o Samuel num campo de futebol, mais concretamente no N10 na Pedrulha, num torneio organizado pelo pessoal da direcção do meu núcleo de estudantes. Para terem uma ideia, eu nem sabia aquele gajo com o cabelo, como se diz na minha terra, à fozeiro com um penteado (com um penacho estranho à frente de um olho) que mais parecia ter saído de um molde feito pelo Eduardo Beauté, era do meu curso. Como é que eu poderia saber se era um habitual frequentador de tudo e de casa de todos, menos da faculdade e das aulas? Eu também, verdade seja dita, também não podia falar muito de hairstyle visto que, na altura, seguia as mais altas tendências dos jogadores franceses de top 14: cabelo longo, barba longa, ao mais singelo estilo de um lenhador de Perpignan!

Como já pude referir, para minha infelicidade conheci o Samuel num campo de futebol, na arena onde, há vários anos, ele luta para vingar o seu talento. O seu grande talento! À semelhança do meu estilo de lenhador, eu tratava a redondinha como um verdadeiro lenhador. A gaja até chorava nos meus pés, pese embora o facto de ainda ser um razoável chutador aos postes. No entanto, eu e a minha maralha (o tropa, o alex, o angel, o tito, o comtesão, perdão, o cortesão, um fininho e baixinho cuja alcunha sinceramente, por mais voltas que dê à cabeça, já não me recordo, e dois brazukas de Erasmus; um deles chamava-se Murillo, não jogava pacote mas apresentava-se sempre na pelada perfumadinho com a sua camisola do Grêmio) havíamos sido campeões do dito torneio no ano anterior, na sequência de uma final altamente controversa disputada contra os nossos rivais de curso, na qual, acossado pela nossa raiva e pelas nossas tentativas de coacção (ó caralho, só acabas o jogo quando nós marcarmos; se acabas o jogo agora fodemos-te lá fora Figueiredo!), o inventado árbitro, prolongou os 30 minutos regulamentares por igual soma, literalmente até ao momento em que finalmente conseguimos acertar com a baliza para conduzir a disputa pelo troféu para a marca das grandes penalidades.

No ano seguinte a coisa piou fino, quando, na defesa da vitória alcançada a ferros, à Super Dragão Style, apareceu a equipa do Samuel, equipa que era composta basicamente pelo Samuel, pelo Bito e por um keeper, o Gonçalo da Madeira, caloiro que, para nossa infelicidade, não quis colmatar, a troco de uma grade de minis e de uma barrita de castanha marroquina, a lamentável pecha que sentíamos naquela posição do terreno. O Samuel em dois ou três lances apresentou-se cheio de estilo aos campeões. Nós corríamos, corríamos, passávamos, passávamos, e lá aparecia sempre aquele cabrão a roubar ou a interceptar a bola. Em 4 bolas, o Samuel resolveu o jogo. Estoirados, ao intervalo, os meus colegas disseram-me: “Branco, vai marcar individualmente aquele gajo”. E eu lá fui. Durante 15 ou 20 minutos fui tratado asperamente pela técnica individual do Samuel como se me tratasse de um ratinho de laboratório a correr na roldana. O gajo pôs-se a segurar a bola à minha frente, passando-a rapidamente de um pé para o outro, só pelo prazer de me ver a olhar sequiosamente para ela. Depois de tanto brincar com a chicha à minha frente, à primeira em que o gajo tentou passar por mim, chapei-o violentamente contra a parede do pavilhão e saí de campo para que a coisa não adquirisse, contornos, digamos azedos, tal era a fúria com que lhe queria esganar o papo. Os gajos acabaram por ganhar 4-0, a nossa team acabou por se desmembrar, dedicando-se a malta ao improdutivo desporto do levantamento do copo, às relações internacionais (nos tempos livres!) e a uma ou duas cabecitas de Marx, Habermas, Boaventura Sousa Santos e Sá Carneiro. Contudo, o gajo nunca me saiu da memória. Se por um lado lhe reconhecia ali a qualidade de um craque, por outro lado só me apetecia apanhá-lo para o amanhar vivo!

Num certo dia, um ano mais tarde, o gajo decidiu enviar-me pelo chat do facebook uma daquelas mensagens clássicas (para todos os contactos) típicas daqueles que perdem o seu tempo a chatear pessoas para ganhar num concurso um secador de 2000 watts de potência na Worten. Lá pensei: “cá está este merdas a pedir-me um like para ganhar um frigorífico ou um microondas na Rádio Popular. Eu dou-te o frigorífico nas trombas, caralho. Nem precisas do like para nada” – meti-lhe o like mas na altura não me apercebi bem do que se tratava. Só um ou dias mais tarde é que percebi que o sacana estava a pedir-me um like para participar num concurso de detecção de talentos organizado pela Nike, concurso que, na altura, oferecia, aos vencedores de cada país um estágio em Inglaterra e a possibilidade de assinarem com um clube da Premier League caso saíssem vencedores desse estágio. De um momento para o outro, dei por mim a trabalhar incansavelmente para que o gajo pudesse concretizar o sonho dele. E o gajo lá foi todo contente para Inglaterra.

A vida fez-me perder contacto com o Samuel até há sensivelmente 1 ano atrás. Ele continuou a batalhar pelo sonho dele nos relvados enquanto eu, naturalmente, tive que me fazer à vida com outra mentalidade, bem distinta daquela que possuía nos meus dias de estudante. Há sensivelmente 1 ano atrás, ocorreu por sorte, a vontade de me deslocar até Nogueira do Cravo para ver em acção alguns dos meus amigos da minha terra natal. Mal tinha posto os pés naquele estádio quando na sequência de um canto, o Samuel apareceu ao primeiro poste a finalizar o golo da vitória com um pontapé de escorpião à Zlatan. De um trago, o Samuel correu para a zona onde estava posicionada a aficción do meu clube e erguer os braços no ar.

“Fodasse Samuel, tinhas que ser tu, caralho” – disse, enquanto o pessoal da minha terra “esfalfava-se” de vontade de lhe quilhar a pinha com um isqueiro.

“Ó puto” – respondeu ele admirado.

“Calma caralho que o gajo é meu amigo” – pedi eu aos restantes.

A partir desse dia, nunca mais perdi o contacto com o Samuel. São raros os dias em que não falo com ele e são também raros os dias em que não estou de acordo com a sua opinião. Falamos sobre tudo: sobre bola a sério (modelos de jogo, tácticas, metodologias de treino, planos de jogo, princípios, ideias, processos, subprocessos, dinâmicas individuais e colectivas) da maravilha que a vida por vezes pode ser, da porcaria que a vida é quando nos não nos oferece aquela recompensa pela qual trabalhamos ardua e incansavelmente até ao limite das nossas forças. Creio até que se iniciarmos agora, às uma e meia da manhã uma conversa sobre Pitágoras, chegaremos a um consenso antes das duas. Sinto que ao longo destes meses fui ganhando no Samuel um amigo, um bom amigo.

O futebol do bom amigo que ganhei não é, aquilo que viram no primeiro vídeo. O golaço apontado frente ao Anadia (CPP – Série C) é só, quanto a mim, o arco-íris da coisa. O futebol do Samuel é muito mais do que aquele remate, muito mais que aquele efeito da bola. Arrisco-me a dizer, conhecendo porém como é que funcionam as coisas no mundo da bola (quem tiver o melhor empresário sobe mais rapidamente, independentemente do seu talento) que o futebol do Samuel é um crime para este nível. Um playmaker destes tem que estar ao mais alto nível. Não só devido à sua portentosa e apurada técnica individual (consideremos a recepção, passe, drible, remate) assim como em virtude das valências de âmbito psico-cognitivo que generosamente possui. O Samuel é aquele tipo de artista da bola ao qual eu costumo qualificar genericamente como um jogador que “sabe tudo sobre bola” ou seja aquele jogador capaz de tomar a melhor acção possível perante o cenário que lhe é oferecido e que rapidamente lê para melhor decidir – sabe ligar o jogo entre sectores como ninguém, sabe segurar de costas quando precisa que a equipa suba em bloco, sabe retirar a bola das zonas de pressão, mesmo nas situações em que o espaço concedido pelo adversário é diminuto, sabe libertar no momento certo para a entrada de um apoio numa acção de sobreposição, sabe atrair defesas quando necessita de os atrair de modo a fixá-los na sua acção, criando espaço para os seus companheiros no oportuno momento em que solta a bola, sabe ler como ninguém os posicionamentos dos colegas e dos defesas, procurando encontrar em cada a melhor solução para a equipa progredir\criar lances de perigo, sabe acelerar a transição para o ataque como ninguém, sabe servir a profundidade com aquele último passe escorreitinho, sabe flectir para dentro quando o adversário lhe dá essa oportunidade (e é bom que o adversário não lhe dê essa possibilidade porque o bicho chuta de caralho). Para além desta importante competência e do seu faro para o golo, o Samuel é provavelmente um dos jogadores mais trabalhadores e mais perseverantes que eu conheço.

Aos 28 anos, muitos naturalmente dirão que muito dificilmente poderá o Samuel chegará a uma primeira liga, embora ele acredite (e trabalhe afincadamente) e eu também acredite que talento e vontade não lhe faltam para lá chegar. Talento e vontade, creio, que felizmente, ele tem de sobra. Infelizmente, para mal dos pecados de muitos dos virtuosos que andam por aí pelas divisões amadoras, os clubes de topo não olham para a idade do jogador pelo prisma da experiência e conhecimento acumulado mas pelo prisma da falta de pernas. É pena.

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Um pensamento em “Samuel Garrido”

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